vinho de laranja

Ana Carolina
3 min readSep 2, 2022

--

Ela foi à casa dele naquele sábado. Não sabia dizer o porquê, mas sabia que não tinha aroma nem de zanga nem de rixa na hálito. Talvez desconsolo e ansiedade. Sempre cautela e dúvida.

Acho que eles conversaram bastante. Ou talvez não, talvez só tenham se encarado como duas obras de arte inacabadas postas ao acaso uma na frente da outra. Lá estavam, no fundo da casa, no jardinzinho onde sonhos já foram rascunhados à 4 mãos, com o cachorro deitado no colo dela, com os pés na piscina, a cabeça no futuro, o coração no passado e meia taça de vinho de laranja no presente.

Ela não queria beber, estava dirigindo. Mas quando ele disse “é vinho de laranja… Cê quer provar?” a curiosidade fez cócegas na garganta.

A língua sentiu aquele sabor e… bom, não tem como explicar.

— onde você comprou isso?

— gostou? Sabe aquele restaurante da portuguesa no Rio Vermelho?

— o do pastel de nata?

— isso, esse aí. Ela faz vinho de laranja também.

— o restaurante não fechou? Ela não voltou para Portugal mês passado?

— pois é… Essa é uma das últimas garrafas por aqui.

Você já tomou um golinho de vinho de laranja? Um golinho só já é mais do que suficiente porque tem gosto de lembrança. Gosto de amarelo com marrom e vermelho, gosto de calor. O primeiro gole tem o gosto da primeira conversa (ainda que não tenha sido a primeira, mas a primeira) que tiveram em outubro tarde da madrugada no sofá da casa dela, aquela conversa sobre pequenas coisas que não se confundem com coisas pequenas. E era tão bom e parecia tão certo e pra que esperar? E esperar o que? Para que certeza quando se tem vontade?

Ela foi tão feliz tentando. A felicidade residiu nisso: na tentativa. E também na tinta de um primeiro gole que manteve sua garganta úmida por um bom tempo.

Mas todo gole seca.

Todo gole perdura o suficiente para o corpo ter tempo de pedir mais, a natureza do primeiro gole, principalmente de um vinho de laranja, é forçar o corpo a cobiçar o delírio da garrafa inteira.

O cachorro deitado no colo dela se sobressalta. Pode ser o som da voz dos dois quebrando a inércia do silêncio, um vento errado, o movimento arranhado de rotação do planeta terra, o sol em leão, a lua em sagitário, o mercúrio em virgem ou até mesmo o marte em touro, tanto faz. Mas o golden retriver que atende por Amarante resolve se levantar rápido o suficiente para instaurar uma desordem com a taça de vinho de laranja aos pedaços, ainda com o primeiro gole em suspenso.

Vidro espatifado e tanto líquido desperdiçado no final da tarde, como o drama de um milhão de tangos inacabados.

Ele levanta para pegar uma vassoura, resmungando “você tem que fazer essas coisas, né, Amarante?” (pode-se ver que Amarante, coitado, só foi perseguir um passarinho). Ela o encara e pensa que ele tem o efeito de um primeiro gole de vinho de laranja: o corpo implora por uma embriaguez que não vem (e qualquer relação que se sustenta em um único gole está fadada, mais cedo ou mais tarde, a uma sobriedade absurda).

A espera substitui a disponibilidade de estar nas mãos do outro, ela quer reivindicar o resto do conteúdo da garrafa para si. Respira fundo, e fantasia
gole após gole,
beijo após beijo,
noite após noite,
transa após transa,
texto após
frase após
palavra
após significado após

(garrafa vazia)
o ponto.

É nesse instante que decide que não o verá mais.

Não degusta de outra taça de vinho de laranja nem daquele meio momento no fundo da casa dele. Se esforça para não rasura-lo. Sabe que qualquer coisa a partir daquele momento pode descascar a camada de ficção então não levanta de vez para não acabar pisando em algum caco de vidro.

Uma semana depois, compra o bendito vinho de laranja pela internet na mão da portuguesa. Paga uma fortuna pela garrafa e outra fortuna pelo frete (fortunas em euro). A cada mudança de apartamento, ele a acompanha. Ela não dá o segundo gole e passa a vida acreditando que aquela foi a melhor bebida que já havia experimentado.

--

--